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Homenagem e memória: tapete vermelho na praça da liberdade

Atualizado: 7 de fev.

Ato simbólico reúne familiares e ativistas

Foto: Ato "Tapete Vermelho" - Crédito: Katia Torres
Foto: Ato "Tapete Vermelho" - Crédito: Katia Torres
 

A manhã de 11 de janeiro de 2025 na Praça da Liberdade em Belo Horizonte parece um sábado comum. Pais passeiam com suas crianças, turistas circulam, a dona da barraquinha de água busca a sombra dos coqueiros altos. Pessoas aguardam o atendimento da massoterapeuta. Adiante, porém, um grupo chama a atenção dos transeuntes ao esticar um longo tapete vermelho no chão e espalhar fotos de mineiros, vítimas da ditadura militar.



Músico Renegado e manifestantes

 

A música "É preciso dar um jeito, meu amigo" de autoria do Erasmo Carlos, ecoa pela praça . Flávio Renegado, guitarra em punho, lidera o ensaio com sua voz potente.


Neste momento, o Ato "Tapete Vermelho" começa a tomar forma. Seu objetivo é duplo: homenagear os familiares dos mortos e desaparecidos durante a ditadura militar no Brasil, e celebrar a atuação de Fernanda Torres, ganhadora do Globo de Ouro de melhor atriz no filme "Ainda Estou Aqui".


Torres, protagonista do drama produzido por Walter Salles, interpreta Eunice Paiva. Eunice é a esposa de Rubens Paiva, figura emblemática desaparecida e torturada nos porões do regime militar brasileiro.



Palco histórico


A escolha da Praça da Liberdade para este ato não é por acaso. Tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha/MG) desde 1977, este espaço tem sido palco de inúmeras manifestações políticas, sociais e culturais desde sua inauguração em 1897.


Um exemplo marcante ocorreu em 29 de maio de 1979. Naquele dia, professores, em sua maioria mulheres, que reivindicavam aumento salarial e melhores condições de trabalho, foram expulsos da Praça da Liberdade pelos militares que usaram jatos d'água e bombas de gás lacrimogêneo para forçar os educadores a bater em retirada. Nesta época os servidores públicos eram proibidos até mesmo de ter sindicatos.


O Ato "Tapete Vermelho" que agora se desenrola em seu solo histórico é mais um capítulo nessa longa tradição de resistência e busca por justiça.


Enquanto o grupo ensaia, um cidadão, ao passar no local, profere palavras contra o ato, ao que o coordenador pede aos participantes: "Pessoal, voltem a atenção para o ensaio. Agora vamos fazer uma simulação, mas se ficar boa vamos continuar pra valer."


Com o tapete à frente, Renegado puxa o coral depois de instruir: "Pessoal, me escutem, na parte 'É preciso dar um jeito, meu amigo', tem que dar uma pausa antes de repetir o próximo refrão, ok? Vamos lá?"


As vozes se unem, hesitantes no início, mas ganhando força a cada repetição.






"É preciso dar um jeito, meu amigo. É preciso dar um jeito, meu amigo. Descansar não adianta. Quando a gente se levanta, quanta coisa aconteceu."

Arte como resistência


À medida que o ensaio da música prossegue, a atmosfera na Praça da Liberdade se transforma sutilmente. O que começou como um sábado comum se torna o palco de um ato íntimo, mas poderoso, de resistência contra o esquecimento. As vozes se fortalecem, e o tapete vermelho ganha um significado profundo, pontuado pelas fotografias das vítimas que parecem ganhar vida.


Músico Flávio Renegado - Foto: Katia Torres
Músico Flávio Renegado - Foto: Katia Torres
 

A presença de Flávio Renegado neste ato evoca a resistência cultural de Minas Gerais. Nascido e criado no Alto Vera Cruz, Renegado representa uma nova geração de artistas que, através de sua música, mantém vivo o espírito de resistência e consciência social iniciados pelo Clube da Esquina durante a ditadura militar.


O Clube da Esquina, formado por músicos como Milton Nascimento e Lô Borges, usou a música como forma de luta contra o regime ditatorial. Uma de suas composições mais emblemáticas, "Clube da Esquina II", captura a essência desta resistência: "Porque se chamava homem | Também se chamavam sonhos | E sonhos não envelhecem | Em meio a tantos gases | Lacrimogênios ficam calmos calmos calmos"


Esta tradição de usar a arte como ferramenta de protesto e memória continua viva no ato "Tapete Vermelho".



Testemunhos


Presente também estão ativistas e parentes das vítimas, como é o caso de Pedro Martins, integrante do Coletivo Alvorada, produtor cultural e coordenador do ato: "Eu mesmo sou sobrinho do Peri, do Pedro Alexandrino Oliveira, um militante de Belo Horizonte, um bancário que foi morto e desaparecido no Araguaia. Então estamos aqui lutando por justiça, por memória, pelos arquivos que ainda não foram entregues às famílias, pelos corpos dos nossos parentes que ainda não pudemos enterrar. Então, justiça sem anistia para golpista."


Alessandra Martins, irmã de Pedro, complementa: "A gente tá aqui hoje para dizer que 'Ainda Estamos Aqui', as vozes deles foram caladas, mas a nossa não. A mãe do Pedro, do Peri, foi a última mãe viva do Araguaia. Ela morreu agora em julho aos 100 anos de idade sem nunca poder enterrar o corpo do filho."


Suas palavras estabelecem um tom de determinação e propósito para o evento, conectando a luta pessoal com o contexto histórico mais amplo.


 

Outra manifestante é Antônia Vitória Soares Aranha, irmã de Idalísio Soares Aranha Filho. Sua voz carrega décadas de luta: "Meu irmão foi assassinado na Guerrilha do Araguaia quando tinha apenas 24 anos. Dali era estudante da UFMG, fazia Psicologia, foi presidente do (DA) Fafich e a Valquíria sua companheira fazia Pedagogia na UFMG e ajudou a criar o (DA) FAE."


 

Bernardo da Mata Machado, irmão de uma das vítimas, ressalta a importância dessa memória: "Meu irmão, José Carlos Novaes da Mata Machado, foi presidente do Centro Acadêmico Afonso Pena da Faculdade de Direito da UFMG. Depois, foi eleito vice-presidente da UNE, a União Nacional dos Estudantes, pouco antes do AI-5."


 

O Ato Institucional Número Cinco (AI-5), mencionado por Machado, foi o mais severo dos 17 atos institucionais decretados pela ditadura militar, marcando o auge da repressão e o fim das liberdades democráticas no país.



UFMG


Em setembro de 2024, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) realizou um ato de reparação histórica significativo. A instituição concedeu diplomas póstumos a quatro ex-alunos, cujas vidas foram brutalmente interrompidas pela ditadura: ao irmão de Antônia Vitória, Idalísio Soares Aranha Filho, o Dali, e para sua cunhada, Walkíria Afonso Costa; concedido também ao irmão do Bernardo, o José Carlos Novaes da Mata Machado.mão do Bernado também e Gildo Macedo Lacerda. Além disso, a universidade homenageou dois docentes e dois servidores técnico-administrativos que tiveram suas carreiras interrompidas pelo regime.


Estas homenagens e atos de reparação não apenas honram a memória dos que lutaram pela democracia, mas também reafirmam o compromisso contínuo da instituição com a justiça, a liberdade acadêmica e os direitos humanos, mesmo nos períodos mais sombrios da história brasileira.



Ato final


O grupo de participantes caminha sobre o tapete vermelho. Embora o ato não tenha atraído uma multidão, cada passo dado carrega um peso simbólico imenso e cada fotografia erguida é um ato de defesa contra o esquecimento. A voz de Flávio Renegado se ergue, liderando o coro: "É preciso dar um jeito, meu amigo É preciso dar um jeito, meu amigo. Descansar não adianta Quando a gente se levanta Quanta coisa aconteceu."


Os participantes deixam a praça com um senso renovado de propósito. O ato "Ainda Estamos Aqui", mesmo que íntimo, serve como um poderoso lembrete de que a luta pela memória e justiça continua, independentemente do tamanho do público.


Marlene Rezende, participante do evento, relata sua experiência: "A participação nesse ato significa lutar para proteger a democracia com seus valores fundamentais: os direitos humanos, a dignidade, promover a liberdade de expressão, o pensamento crítico e honrar a memória daqueles que lutaram pela liberdade. Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça."



Espaços de memória


A Praça da Liberdade, testemunha silenciosa de tantos capítulos da história de Minas Gerais, agora carrega mais uma camada de significado. O tapete vermelho pode ser recolhido, as fotografias guardadas, mas as histórias compartilhadas neste dia continuarão a reverberar pela persistência daqueles que se recusam a esquecer.


Outro espaço na capital mineira deveria estar disponível à comunidade mineira: o antigo prédio do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) que urge em se tornar um museu ou memorial da ditadura militar. Este projeto, entretanto, desde 2018 enfrenta desafios significativos para ser efetivado.


Prédio Dops recebe ato por direitos humanos em 2017 Lidyane Ponciano / CUT Minas
Prédio Dops recebe ato por direitos humanos em 2017 Lidyane Ponciano / CUT Minas
 

O atraso na abertura deste memorial não apenas adia oportunidades de educação e reflexão, mas também corre o risco de enfraquecer a memória viva daqueles que vivenciaram este período sombrio. Assim como o ato "Tapete Vermelho" demonstra a persistência da luta pela memória, a urgência em concluir este projeto reafirma o compromisso contínuo com a verdade, a justiça e a democracia.


Enquanto isso a noite cai sobre Belo Horizonte, o slogan "Ainda Estamos Aqui" persiste para quem teve acesso ao conteúdo do evento e é um eco de resistência que se recusa a ser silenciado.







10 comentários

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Onny
16 de jan.

Parabéns pelo excelente e relevante texto! Podia se tornar um ato continum anualmente.

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Katia Torres
10 de fev.
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Obrigada Onny, a ideia é continuar e contamos com vocês. Mandem sugestões e críticas. Leia a história de Sá Amélia também, penso que vai gostar.😘

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Laece
15 de jan.

Kaká, q maravilha essa sua matéria. Perfeita em todos os detalhes. Vc, com certeza, Será uma jornalista digna de mtos 👏🏻👏🏻👏🏻

Parabéns , menina linda!

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Membro desconhecido
16 de jan.
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Oiê, fico feliz com seu elogio. Espero que possa ajudar as causas importantes ao nosso redor. Sugestão: leia a matéria que fiz sobre Sá Amélia ( lá de Itaporé). https://www.diversojornal.org/post/sá-amélia-resiste-barro-branco-bodoque-e-pescaria

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Ótima iniciativa. Ótima reportagem!! Quero mais!! Parabéns

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Katia Tores
10 de fev.
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Oi Marília, fiquei muito honrada com sua presença no blog. Participe mais, sugira pautas, envie suas posições sobre política, economia, terrítórios, enfim, esteja aqui nos oferecendo sua valiosa presença. Aproveito para lhe indicar a reportagem sobre desconexão: https://www.diversojornal.org/post/desconex%C3%A3o-digital-conectando-a-natureza-no-cora%C3%A7%C3%A3o-do-cerrado-mineiro

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Convidado:
14 de jan.

Adorei sua matéria, Katita!

Bora produzir mais ✊🏿

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Katia Torres
10 de fev.
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Olá, bom dia. Fico muito feliz e participe conosco desta empreitada que é levar informação negligenciada pela grande mídia e que tem tanta relevância para todos nós. Leia mais, tem artigo novo no blog: https://www.diversojornal.org/post/desconex%C3%A3o-digital-conectando-a-natureza-no-cora%C3%A7%C3%A3o-do-cerrado-mineiro

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