Desconexão digital: o festival que desafia o tempo

Conexão com a natureza no Cerrado mineiro

Em São Gonçalo do Rio das Pedras, um pitoresco distrito do Serro com pouco mais de 1.500 habitantes, aninhado entre serras e campos rupestres, crianças vivem uma anomalia temporal durante o 27° Festival Cultural de Férias 2025. Longe do zumbido constante das notificações e da pressão das redes sociais, elas embarcam em uma excursão que promete entrelaçar cultura local, educação e contato com a natureza.

Crianças participam festival de férias - foto Katia Torres

"Fica ali logo atrás, estamos indo para lá", responde uma das três meninas, amigas e primas, já na soleira da porta. Seus olhos cintilam com a expectativa da jornada que se aproxima. Para uma delas, a amiga recém-chegada da cidade grande, esta aventura representa um contraste marcante com a vida urbana que deixou para trás.

As ruas de pedra, com séculos de história, despertam com o burburinho dos pequenos exploradores que se dirigem à escola. O ar, carregado com o aroma de café fresco e o canto dos passarinhos. No mapa da excursão consta o pequeno mas imponente Rio das Pedras que serpenteia desde sua nascente, passando por boa parte do povoado até se despencar em majestoso paredão de pedras. A Serra do Espinhaço,  única cordilheira do Brasil e a segunda maior da América do Sul e o Bioma Cerrado, juntam-se a este rio para formar valioso ecossistema. É este o cenário do festival a promover a desconexão tecnológica e a conexão com a natureza.

Mapa das Reservas da Biosfera 2019 - Fonte: RBRB

O contraste entre a pequena comunidade, majoritariamente quilombola, e o vasto bioma que ela guarda torna a experiência do grupo ainda mais enriquecedora. O Cerrado, segundo maior bioma da América do Sul e um dos hotspots de biodiversidade do mundo, ocupa cerca de 22% do território brasileiro e 50% do estado de Minas Gerais, segundo a Rede Brasileira de Reservas da Biosfera (RBRB). Este bioma abriga uma biodiversidade impressionante: mais de 11.600 espécies de plantas nativas catalogadas, 199 espécies de mamíferos e 837 espécies de aves.

Desconexão digital

A recente Lei Federal 15.100, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 13 de janeiro de 2025, adiciona uma nova camada de significado a este festival.

O texto proíbe o uso de aparelhos celulares nas escolas, uma medida que visa salvaguardar a saúde mental, física e psíquica das crianças e adolescentes. Em São Gonçalo do Rio das Pedras, esta lei encontra um terreno fértil para ser reafirmada.

Fernando Giannini, sócio-proprietário da Streamer e especialista em tecnologia educacional, em seu blog oferece uma perspectiva única para experiências como esta. Com 20 anos de experiência e passagens pelo MIT, Google Business Educational Center e Microsoft, Giannini defende uma abordagem mais holística da educação. "A educação parte dos encontros e do senso de comunidade: se aprende na experiência, na convivência com bons professores, mentores e amigos", afirma.

Um estudo de 2018 na The Lancet Child & Adolescent Health analisou 4.500 crianças americanas de 8 a 11 anos, revelando que só 37% respeitavam o limite de 2 horas diárias de tela. Aquelas que seguiam essa recomendação demonstraram melhor desempenho cognitivo, evidenciando os benefícios de limitar o uso de dispositivos digitais na infância.

O Guia da Aventura

Peter Cézar, conhecido carinhosamente como Tio Peter, é um dos voluntários que promete levar o grupo mirim para longe das salas de aula convencionais e, mais importante, longe das telas dos celulares. As crianças, que se avolumam no pátio da Escola Estadual Mestra Virgínia Reis, aguardam ansiosamente sua chegada.

"Vocês gostam de água?", pergunta Peter, recebendo acenos afirmativos. "Então, isso aqui é uma vivência. A gente vai fazer uma excursão, vai ser um passeio pelo rio. Eu pratico uma coisa chamada sobrevivencialismo. Vocês sabem o que que é o sobrevivencialismo?"

Uma das crianças arrisca uma resposta: "O sobrevivencialismo é ficar nos lugares, assim, que não tem casa e tem mato."

Ponto de encontro - Tio Peter e o grupo mirim - Foto: Katia Torres

Peter sorri, com o entusiasmo de quem está prestes a compartilhar um tesouro precioso: "Isso mesmo, é por aí. Para se defender, quando você tá numa situação crítica, você tem que, com as coisas que você tem na mão, você tem que sobreviver, né?"

Um adolescente completa: "E com os animais, se eles tiverem com medo da gente, a gente tem que acalmar eles e não entrar no espaço deles. Tipo assim, se vem uma cobra, você tem que dar espaço para ela passar."

Peter, visivelmente impressionado, responde: "Isso. Você é cara inteligente, hein, cara? Gostei de ver só fala aí, é, mas é isso mesmo."

Os ouvintes, livres das distrações digitais, parecem mais atentos, seus sentidos aguçados, cada palavra é absorvida avidamente.

Enquanto Peter prepara o grupo para a jornada à frente, o cenário ao redor deles oferece suas próprias lições silenciosas. O olhar atento das crianças logo se voltará para as pequenas flores que pontilham a paisagem, vibrantes e resilientes, mesmo sob o sol intenso do Cerrado integrado na natureza da aventura que está prestes a começar.

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Sempre-Vivas resilientes

Um símbolo perfeito desta resiliência são as Sempre-Vivas, flores icônicas que adornam a paisagem local. Recentemente elevadas ao status de Patrimônio Cultural Imaterial de Minas Gerais, estas notáveis plantas, predominantemente da família Eriocaulaceae, florescem nos campos rupestres do Brasil, com destaque para a Serra do Espinhaço.

Actinocephalus da família Eriocaulaceae sendo conhecidas como sempre-viva ou chuveirinho - Foto: Katia Torres

Seu nome poético, sempre-vivas, deriva de sua característica: a capacidade de manterem forma e coloração mesmo após colhidas e secas. Assim, estas flores se tornam uma metáfora viva da persistência da natureza e da cultura local, resistindo ao tempo e às adversidades, tal qual o bioma que representam.

A importância dessas flores é tão significativa que foi criado o Parque Nacional das Sempre-Vivas, sendo administrado pelo ICMBio e tendo sua sede no município de Diamantina que abrange terras dos municípios de Diamantina, Olhos D'Água, Buenópolis e Bocaiúva. Este parque não apenas protege essas espécies únicas, mas também serve como um importante centro de pesquisa e conservação.

No entanto, apesar de sua extensa biodiversidade, mais da metade da área desse bioma está altamente degradada, tornando o Cerrado o bioma mais ameaçado do Brasil. Sob crescente pressão para expandir a agricultura e a pecuária em grande escala, este bioma ainda sofre com um acelerado processo de degradação ambiental.

A urgência de sua preservação torna-se ainda mais evidente à luz dos dados recentes do MapBiomas sobre o desmatamento em Minas Gerais. Em 2023, o estado perdeu 74.517 hectares de vegetação nativa, com uma média alarmante de 204,15 hectares desmatados por dia. Ele foi o mais afetado, respondendo por 83,39% do desmatamento total do estado. Na microrregião de Diamantina, que inclui o município de Serro e o distrito de São Gonçalo do Rio das Pedras, a tendência de desmatamento acumulado ao longo das últimas décadas é particularmente preocupante.

Estes dados ressaltam a importância de iniciativas como o Festival Cultural de Férias, que não apenas educa, mas também inspira as novas gerações a se tornarem guardiões ativos deste bioma vital.

À medida que se embrenham pelo caminho que margeia o rio, os exploradores - alguns descendentes diretos dos quilombolas que há gerações chamam esta terra de lar - carregam consigo não apenas mochilas e cantis, mas o peso da história e a responsabilidade pelo futuro. Cada passo é uma lição viva sobre a importância de preservar o bioma que abraça São Gonçalo do Rio das Pedras em seu manto verde-dourado.

Atividades como esta não apenas entretêm e educam, mas também cultivam um senso de responsabilidade ambiental nas crianças. Ao entender um pouco mais sobre a biodiversidade, suas ameaças e a importância de sua preservação, os jovens podem se tornar embaixadores da conservação, entendendo que o Rio Jequitinhonha, com seus 920 km de extensão, é mais do que um corpo d'água - é uma artéria vital para o ecossistema e as comunidades.

Como Giannini ressalta em seu blog, "a inovação e a criatividade surgem desses encontros, quebrando esquemas rígidos para fazer surgir algo mais consistente, simples e com atuação prática." O Festival de Férias de São Gonçalo do Rio das Pedras exemplifica esta filosofia, oferecendo uma alternativa enriquecedora ao uso excessivo de tecnologia e um modelo de como nutrir o senso de comunidade na era digital.

Assista ao encontro do "Tio Peter" com os exploradores mirins antes da excursão

Peter César, instrutor da excursão